domingo, 14 de março de 2010

cinza náutico

antigas madrugadas estão ancoradas na baía
vela, cordas e nós
arquitetura de mágoa
flutua sobre água cinza chumbo
março se arrasta em espiral de despedida

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

once on a high and windy hill

jennifer jones morreu. ontem, meu aniversário. ao telefone, meu pai não conseguia articular "feliz aniversário". a degeneração neurológica já afeta as cordas vocais. do meu lado, eu não conseguia articular "obrigado". de tanto chorar. quando eu era pequeno, vi com ele "suplício de uma saudade". love is a many splendored thing, dizem.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

dezembro

"so we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past".

já quis muito uma vida "gatsbyana". mas entre o gatsby e eu só há interesecção no irresistível movimento acrobático que nos faz pousar no meio do nosso passado após um duplo carpado encerrado com mesuras protocolares para a audiência.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

ainda a velha investigação genealógica

tudo sempre dependerá de como a luz incide nos meus olhos. um negócio como óculos bifocais aplicados à vida. ás vezes acerto longe, miro distâncias e tomo decisões corretas porém prematuras e erro justamente com as coisas que estão aqui ao lado, por vezes no próprio colo do presente. ando precisando me concentrar para sentir melhor as coisas, andar nas ruas e enxergar o que acontece, não perder uma hora inteira distraído no trajeto de um ônibus. lembrar de situações e coisas, agendar horários para pensar em pessoas queridas em quem não penso há tempos, parentes, gravar memórias que correm o risco de se apagar, ontem mesmo lembrei-me de um domingo no início dos anos 80, atravessando o calçamento da rua em que morava, os pés descalços, as pedras quentes chamuscando a sola dos pés, minha mãe me pegando no colo na porta da rua e me fazendo sentar na poltrona da sala por uma meia hora, para esfriar os pés antes de pisar no fresco linóleo vermelho encerado, brilhando, na sombra intensa da casa, perigo de estuporar, cuidados misturados com brutalidade e gentileza como só a minha raça é capaz, vick vaporub no peito para parar a chiadeira, peixe pescado no açude, os domingos duravam anos inteiros para passar. velhas muito festeiras, um gene recessivo de personalidade expansiva naquela casa, tocando o acordeon (onde foi parar?) nos braços corpulentos, manchas de senilidade. "tristeza não tá com nada no balaio", diziam e seguiam pro pátio pra tomar uma fresca.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

F A M Í L I A

As fotos vazam os anos 70 para dentro dos 80
Poses em frente à varanda
Guaraná champagne, aniversário
Noivas empobrecidas mostram bolos confeitados
Velhinhas posam em frente a uma TV
Um som 3 em 1, um armário
Seguram um neto após o batizado
Mostram cavalos amarrados
Na porteira
Exibem carros utilitários com crianças ao volante
E o quadro da Catedral de Aparecida
É na pobreza dos meus
É na feiúra dos meus
Que me sinto consolado
Eis o que sou
Gostamos de posses
Parcas que sejam
Que nos digam que relevo ocupamos na topografia do mundo
Minha genealogia:
Uma cartilha
Uma carta enigmática do almanaque sadol
Uma declaração de bons antencedentes
Um histórico escolar
Uma participação de casamento
Um catálogo da Hermes
Um mostruário de passamanarias
No armarinho da mãe
Um filho distante sorri no porta retrato

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Coração Shirley Temple

Quando menino lia livros da Laura ingalls
E invejava a pobreza e a fome de “O longo inverno”
Vítima do coração melodramático shirley temple dos meus oito anos
Olhava-me no espelho sempre que chorava
Que aliás a penteadeira era meu canto favorito de choro
Hoje no inverno que se arrasta há tantos anos
Caí da pose
Meu reflexo perdeu o lugar entre o pó compacto max factor da avó
E a Santa Edwiges da mãe
Mas ainda choro defronte ao espelho de um banheiro
Às três da tarde num centro comercial

quarta-feira, 22 de julho de 2009

blue for the tears, black for the night's fears

cristalizo atrás das pálpebras uma imagem de infância que me enche de serenidade logo ao amanhecer: um domingo de sol, um rio piscoso, um sombreiro grande de ramagens, um livro, vinho frascatti, lambari frito na farinha, carroceria de D-20, um banho em box de azulejos azuis, alfazema garrão e sono às 5 da tarde ao som de uma canção de aznavour entreouvida do escritório do pai.